Forgotten Sounds of Tomorrow
24.09.2022
23.12.2022
i.
Nothing, like something, happens anywhere [1].
É à imagem de um vórtice magnético, que simultaneamente nos atrai e repele, que se principia (e precipita) a primeira exposição de Alexandre Estrela na Galeria BRUNO MÚRIAS – da segunda sala para a primeira, da penumbra para a pontuação lumínica, do silêncio para o ruído intermitente de colisões e assombros aritméticos computadorizados. A exposição apresenta um conjunto de trabalhos inseridos num arco temporal que se inicia nos anos 2000, em Nova Iorque, e que termina hoje, em Lisboa.
Os desenhos, desenvolvidos ao longo destes vinte anos, são agora ativados pela projeção do vídeo, descrevendo uma metodologia de trabalho cerzido a dois tempos expandidos que os catapultam para o presente. Apesar da sua qualidade estática, existem nos traços do marcador ou de pincel, vetores de movimento, fantasmas que assumem funções mecânicas indutoras de coreografias pré-estabelecidas – que tanto predestinam o gesto como recordam a sua memória.
Se o poema funciona enquanto máquina em função da prosa [2], também o desenho poderá funcionar enquanto engenho. Nesta exposição, a sua presença, ora se apresenta enquanto estrutura recetora de animações ondulantes – uma arena para o comportamento orgânico de elementos animados que competem entre si – ora colabora na realização de tarefas que nos ultrapassam. Pode também ser a pala que dirige o olhar para o deturpar de mensagens ou para o revelar da competição entre meios (desenho, fotografia, vídeo e som) no exercício da representação. A evidência destes mecanismos traduz-se na sua maioria em núcleos concretos, conceptualizados a posteriori, sendo na verdade descoberta dentro da própria escolha do meio que instiga a dualidade da perceção – muitas vezes desadequada em relação à sua função. Cada trabalho convoca o espetador, prendendo-o ao presente ou relegando-lhe um lugar de observador frente a um drama com o qual se identifica, mas cuja conclusão o transcende. O clímax que esperamos é-nos assim dado, não como resultado final, mas enquanto consequência causal, elétrica.
ii.
Lanterna é a primeira obra da exposição. Recebe-nos enquanto pintura iluminada, composta por elementos geométricos e um arabesco – um tag – replicando no pano cru uma composição encontrada num cartaz de rua promocional. Observamos, então, que a composição é lentamente alterada pela incidência lumínica de uma projeção vídeo. Três pontos de luz mapeiam o traço – dois controlando a cor da projeção (RGB) e alterando o pigmento da tela, e o terceiro controlando a luz geral, revelando a pintura. Nesta técnica de over projection [3] cria-se uma infinidade de nuances cromáticas que perseguem infinitamente o movimento da mão grafiteira do autor, à procura da assinatura ideal.
Forgotten Sounds of Tomorrow apresenta um anúncio de uma coluna de som harmon/kardon, um objeto cuja transparência e design revelam uma inquestionável qualidade de reprodução sonora. No ano 2000, Estrela escreveu sobre a fotografia a frase Sons esquecidos do amanhã, declarando essa inovação como um artefacto museológico [4]. Um reflexo de luz/projeção vídeo em loop movimenta-se sobre o vidro que a protege, introduzindo-lhe um ritmo vivo, ressuscitando-a e convocando-a para o presente. Este ato quase fúnebre desencadeia a ativação da sua dimensão temporal, tão possível de pertencer a um tempo passado como a um tempo futuro – num limbo.
Na terceira obra da exposição, Throat Clearing, a imagem de uma pequena vara oscila sob as ordens de um computador. O seu movimento pendular irregular interage com duas linhas pintadas na vertical e a variação da inclinação do plano liberta, por consequência, sons guturais e harmónicos. As cordas vocais (que podemos associar às duas linhas negras estáticas) produzem um eco melódico de ressonâncias naturais, como se num contínuo exercício de voz. A ação é pontualmente interrompida pela tosse do intérprete, destabilizando o sistema polifónico e forçando um novo arranque. Novamente, é o diálogo entre o desenho e o vídeo que invoca o som.
Três objetos antropomórficos caem nas paredes da galeria em Motion Seekness. Fotocópias ampliadas de capacetes de paraquedista são postos em queda livre através do desenho. Cada capacete tem acoplado uma máquina de filmar e uma de fotografar, que capturam o momento da queda [5]. O rasto negro, desenhado a partir dos capacetes, determina a qualidade da queda – se retilíneo, mais veloz, se sinuoso, mais lento.
Magnetic Field Prepared for Video apresenta um desenho, também ele do ano 2000, ativado por vários pontos em movimento – pequenas células-vídeo que se movem em rotas pré-condicionadas pelo desenho. Cada célula que deambula nesta arena magnetizada reage a uma velocidade diferente, interferindo nos comportamentos das células vizinhas e culminando numa série de colisões aleatórias. A cada embate interno é despoletada uma reação sonora, e é libertada energia que se dispersa pelos restantes corpos, que ganham ou perdem velocidade. O desenho enquanto estrutura para esta narrativa da luz – enquanto esqueleto da ação – é excitado sucessivamente pelas partículas viajantes que, ao limite, iniciam sobre ele um processo de desaparecimento – envelhecendo-o, oxidando-o.
iii.
Não chegamos a sair plenamente do vórtice primeiramente enunciado, tendo até mesmo a sensação que de alguma forma ele invade o nosso cérebro/corpo, massas também elas máquinas. É como se cada objeto fosse uma aproximação exterior aos nossos mecanismos internos, onde as regras que ditamos seguem ações de reação pré-determinadas, ainda que com possibilidade de sobressalto. A surpresa hipotética, incerta relativamente ao momento em que nos acontece, viaja pelos vetores temporais do passado e do futuro que nos intercetam – por sua vez, projetando num o reflexo do outro, e vice-versa.
From Sound to Speed é esse elemento viajante na exposição, escondido no recanto da galeria. Este desenho é um diagrama de um curto fade out de som, mais precisamente o som de um traço rapidamente riscado no papel – materializado enquanto hipótese arqueológica sonora. Pressentimos o ritmo da caneta até ao silêncio.
A certeza do futuro que criamos à imagem dos reflexos pode ser sempre falsa, muitas vezes inesperada. Nesse caso, será possível fugir à voragem do acaso?
A Quiet Poem [6]
When music is far enough away
the eyelid does not often move
and objects are still as lavender
without breath or distant rejoinder.
The cloud is then so subtly dragged
away by the silver flying machine
that the thought of it alone echoes
unbelievably; the sound of the motor falls
like a coin toward the ocean’s floor
and the eye does not flicker
as it does when in the loud sun a coin
rises and nicks the near air. Now,
slowly, the heart breathes to music
while the coins lie in wet yellow sand.
Eva Mendes
[1] Larkin, Philip. Último verso do poema I remember, I remember, in Philip Larkin Collected Poems, Faber Poetry, 1988.
[2] No sentido desenvolvido por William Carlos Williams, in Selected Essays of William Carlos Williams, New Directions, 1969.
[3] Projeção de cor sobre outra superfície colorida.
[4] Na realidade, o objeto encontra-se em exposição no MoMA, em Nova Iorque.
[5] Comuns nos anos 2000, estes capacetes foram descontinuados após a junção de vídeo e fotografia no mesmo dispositivo.
[6] O’Hara, Frank, in The Collected Poems of Frank O’Hara, University of California Press, 1995.
- Alexandre Estrela