Guiné-Bissau 1990
16.09.2023
11.11.2023

António Júlio Duarte sabe como partir. Talvez a origem deste gosto remonte ao seu retorno à Guiné-Bissau em 1990, com apenas 25 anos de idade e após uma breve viagem no ano anterior a esse país, então recém- independente. Desta vez, é um convite a fotografar a cena musical urbana que potencia o seu regresso. Bissau, Bubaque, Cacheu e Gabú são algumas das cidades por onde o instante de cada encontro o conduz, apesar do abandono ao projeto inicial por falta de financiamento. Na capital, as estruturas da cidade – o matadouro, o hospital – e as ruas febris à luz da terra que cobre o chão guineense. Nas ilhas e províncias – o horizonte, os rituais, o mar. O trabalho de António Júlio Duarte não começa nem acaba no inefável que as suas imagens fotográficas encerram, mas talvez nele se prolongue essa mistura da realidade aliada ao sensível que, tão inquietantemente, reveste o mundo.

Parte da singularidade desta série reside na tensão interna inerente à qualidade monocromática das imagens. As manchas, focos e composições transbordam para o exterior uma perceção tangível do que vê e do que é visto, aniquilando por momentos a própria natureza da imagem e o seu tempo – assaltando-nos com a verdade que reside entre o fantástico e o real. Se por um lado o seu fulgor se manifesta no imediato, sem hesitação, por outro a metamorfose se revela lenta e insidiosa à retina do olhar.

A fotografia tem, de facto, essa estranha condição de ser uma prática melancólica [1]. Na primeira imagem da exposição, uma figura lê enquanto sentada numa cadeira na praia. A sua composição detém na sombra da árvore o seu centro, encontrando o homem numa das suas extremidades, profundamente absorto da paisagem que o engole naquele momento. A capa do livro não é legível. Adiante, a pele de um felino seca, esticada e estendida, sobre um chão de ripas de madeira ressequidas pelo sol. Duas crianças adornadas com saias Bijagós unem-se para um retrato durante a cerimónia do fanado [2], numa pose clássica, quase escultural. Não é possível ver os seus rostos, apenas algumas notas que uma delas parece esconder no interior da sua mão. Um rapaz com uma máscara nturudu [3] introduz a época do ano em que a maioria das imagens acontece – Fevereiro, em Bissau. No dia 11 desse mês, a libertação de Nelson Mandela e a imagem da Praça do Império eleva-se com a solenidade de uma Torre de Babel. A afinação dos tambores, através do calor pelo fogo, incendeia uma atmosfera de espontaneidade e euforia que sonoriza a imagem fotográfica central de um grupo de pessoas que se apressam mascaradas, em festa. Os panos de pente [4] cobrem cinturas e ombros, esvoaçando numa corrida desenfreada e aparentemente sem destino. Nesse caminho em vórtice, pressente-se o movimento dos signos sociais de uma cultura a pique da apoteose e o símbolo final – um anjo com asas de abutre – ajoelha-se na posição serena de um ser divino, místico. Simultaneamente profano e sagrado, aguarda em espera nesta realidade em transe – o Carnaval [5].

No regresso, o partir. Se é possível identificar os momentos em que a tradição pictórica se presencia nestas imagens – a paisagem, o nu, o retrato, o auto-retrato – outros aspetos, na maioria dicotómicos, parecem invadi-las sem remorsos. Trata-se de uma presença inexplicável – espectral – que as atravessa como que numa história paralela e que antecipa o seu carácter imagético, de algum modo predestinando-o em cadência. Desejo, violência. Serenidade, inquietação. Vida, morte.

Eva Mendes

 

 

[1] Guibert, Hervé, in A Imagem Fantasma, BCF Editores, Lisboa, 2023, 40.
[2] O fanado é o nome que se dá ao ritual secular de passagem das crianças à vida adulta. Com durações variadas, dependendo das comunidades, pode durar vários dias. Em ambos os casos, feminino e masculino, procede-se ao ensinamento respetivo das tarefas da vida adulta de cada um.
[3]  Nturudu significa “máscara gigante”, mas também feio e assustador, no uso quotidiano.
[4] Panu di pinti, pano de pente em português, é um tecido tradicional guineense, conhecido pelos seus padrões e cores vibrantes.
[5]  No carnaval de Nturudu, “há um incentivo às pessoas para esquecerem os problemas, as diferenças sociais, étnicas e religiosas. O carnaval, como festa da carne em oposição à quaresma, tem o podere de inverter as regras sociais vigentes e de criar um espaço profano e de liberdade, mesmo que momentâneo, para fazer a crítica ao governo relacionados aos problemas que atingem o quotidiano social e para praticar a competição entre os grupos de forma lúdica; e, principalmente, em espaço de sociabilidade, de desabafo, em que se fala de paz, de justiça, de educação, de desenvolvimento e de unidade”. In Revista Tensões Mundiais, v.15, n.29, O Carnaval de Nturudu: diversidade, cultura e identidade nacional, Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, 2019, 125.

 

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