PASSAR PELAS MÃOS
11.05.2019
27.07.2019

A exposição tem a forma de um de movimento continuado, lento, incisivo e cumulativo de ações que dispõem as obras e os seus elementos ao serviço de um grande desenho. É uma fusão, uma interação intencionalmente harmonizada entre o gesto e a grande folha branca, que se abre à transformação para expressar um elemento interno fundamental que oferece à instalação todo o seu corpo: “passar pelas mãos”. “Passar pelas mãos” é uma expressão antiga para a ideia de nos ocuparmos de alguma coisa; não de um tomar mecânico, de reter e não libertar, de guardar, de arrumar, de isolar do mundo; mas antes de um cuidar, atento, também demorado, com vista ao conhecer. Ter algo entre as mãos é ter a oportunidade de tocar e sentir em pormenor, de ver melhor, de ver o inteiro e o novo, de reconhecer a forma e a cor e a temperatura e a transformação. Ter algo entre as mãos é compreender o que delas nos escapa e o que não pode ser segurado.

Bruno Cidra (Lisboa, 1982) põe-nos em contacto com esse movimento. Todos os gestos do desenho têm, desde a origem, a carga desta passagem. Qualquer das obras, todos os fragmentos, passaram não só pelas mãos do artista como por algumas outras, relevantes para o trabalho. O desenho em ferro, primário, que Cidra produz, é passado a bronze, por outras mãos, voltando então, de novo, às suas para a composição final do desenho. As estruturas de ferro e cobre – vestígios de outras mãos – são tomadas pelo artista que se apropria delas e as preenche com papel, compondo-as como mancha ou como traço expandido e também como elementos desse lento gesto final, cuja forma se revela então como um desenho no espaço, no chão, nas paredes da galeria, à medida que a atenção desse novo cuidar organiza as decisões que o artista toma sobre ela. Por fim, de certo modo, o desenho é deixado às mãos dos observadores, de outros cuidadores que também veem e também transformam.

Mais ainda porque se trata não só de um desenho, mas também de uma arquitetura, de um espaço habitado, que é alterado, redesenhado pelas formas bi e tridimensionais – algumas são-no simultaneamente. Formas que atuam com o espaço para colocar o espectador diante da origem e da primitividade desses gestos e mais por dentro do movimento de construção do desenho, como se pudessem seguir-lhe uma pista, uma certa ordem interna, porque também a materialidade e a escala requisitam a ativação do corpo que observa. Há o papel, branco, que se funde com a parede e que atua no sombreado e na expressão do traço verde-bronze, em contraste. Há as peças muito pequeninas que nos atraem para perto e apelam ao toque, e as outras maiores e acutilantes, mais agressivas, que nos afastam e nos oferecem a panorâmica da sala, o todo. Há as flechas, finas e esguias que rasgam e dividem o espaço; essas que podemos circundar e que nos alteram a perspetiva. Há ainda as manchas ávidas desertoras da linguagem dominante que se fazem ver, que se mostram através da expansão do desenho em formas mais múltiplas e que atuam ao nível da desconstrução conceptual e da imaginação, articuladamente com os espaços vazios, entre obras, que nos alteram intencionalmente a cadência da leitura, acentuando a renovação e a atenção sobre aquilo que temos entre mãos para que nos continue a escapar e para que possamos ver sempre de novo, pela primeira vez.

Trata-se, enfim, de um grande desenho que não é só um desenho, ou de esculturas que não são apenas esculturas, porque o papel – do desenho – e o bronze ou o ferro – da escultura – tomam a vida uns dos outros e tornam-se numa outra coisa; são fragmentos – simultaneamente obra e vestígio – de um movimento que se compõe de adição e de supressão, da relação de algo atual com algo anterior, e dentro do qual o artista explora, no seu alfabeto próprio, algo que é também intrínseco à sua prática artística e que se prende com a investigação do potencial de harmonia e de complementaridade entre o desenho e a escultura, entre o papel e o ferro ou o bronze, mas conferindo-lhes aqui a escala de um universo, do universo (da poética) do olhar, da surpresa e da imprevisibilidade da transformação de tudo aquilo que está e que nos “passa pelas mãos”.

 

Maria Joana Vilela

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