Arqueólogas do Afeto – cur. Renata Felinto
20.11.2021
30.12.2021

Arqueólogas do Afeto

Desenterrando o afeto: tecnologia do bem viver o presente

“Coloquei no papel as aspirações da mulher no campo afetivo para que o mundo as veja, as reconheça e reflita sobre elas. Se as próprias mulheres não gritam quando algo lhes dá amargura da forma como pensam e sentem, ninguém o fará da forma como elas desejam”
Paulina Chiziane, em Eu mulher… por uma nova visão do mundo

Arqueólogas do Afeto, que a Galeria Bruno Múrias agora apresenta, é a proposição da política dos afetos como estratégia às práticas coloniais que estruturam as relações no Ocidente.
Parte de uma perspetiva de resgate de epistemologias ancestrais de cura, de relacionamento e de espiritualidade partilhada por povos afro-diaspóricos, como alternativa artística e crítica ao modelo de vida fundado pela modernidade.
Fortalecem essa abordagem da arte as criações das artistas afro-brasileiras Erica Malunguinho, Hariel Revignet, Kika Carvalho, Mariana Rodrigues e Rosana Paulino.  Da pintura sobre tela às foto-performances, escavam os processos de nascimento de obras criadas, não a partir da reiteração da amargura das opressões, mas sim a partir do fortalecimento das resistências organizadas na doçura da malungagem.
Erica Malunguinho apresenta trabalhos da série Engoli facas, pari caminhos ou Onde queres a dor sou revolução, que registam as suas respostas às violências contra a sua condição interseccional, transfiguradas em exercícios estéticos e conceptuais. Entre as polaridades da faca que corta e a flor que foi lesada, ela traz um soro ao adoecimento corpóreo, emocional e mental.
A fim também de abrandar as enfermidades, Hariel Revignet investiga as epistemologias das antigas acerca da sabedoria que cura, presente nas propriedades da arruda, alecrim e alfazema que compõem o políptico Tecnologia ancestral: Afeto das Ervas.
Kika Carvalho, na série Encontros, retrata artistas negras brasileiras, como a grande dama da dramaturgia Ruth de Souza (1921-2019). Homenageia o desbravar das mesmas no campo das artes e anuncia a sua elevação ao estatuto de ancestrais. A escolha do azul ultramarino relaciona-se com a escassez desse pigmento na era pré-industrial, em aproximação à parca presença de pessoas como ela no meio artístico. Por fim, é também uma alusão à paisagem litoral da sua cidade natal.
As potencialidades do feminino, do colorido e da abstração também se apresentam nas pinturas de Mariana Rodrigues, que desenvolve a sua produção a partir da liberdade expressiva que a conecta com outras camadas do espiritual.
Finalmente, Rosana Paulino apresenta duas séries de desenhos, Búfala e Senhora das Plantas, que tratam da juventude e da maturidade como momentos do desenvolvimento da mulher; e a vídeo-performance Das Avós, que revisita a vasta iconografia brasileira de fotografias do século XIX e homenageia retratos de mulheres escravizadas que poderiam ser avós, bisavós, tetravós de qualquer pessoa negra brasileira.
Todas estas artistas visuais, nas suas diferentes idades, peles e subjetividades, perfuram as terras rígidas da conceção do que é arte a partir de um único procedimento concebido pelo cânone Ocidental. Com as diversas linguagens, materialidades, conceitos e poéticas ativadas, são proporcionadas várias visualidades de reconhecimento e reverência às suas linhagens, bem como feitas revisões de historicidades que nos religam ao afeto enquanto riqueza arqueológica de direito de todos e todas, imprescindível para vivermos o presente.

Renata Felinto
Lisboa, Novembro de 2021

  • Rosana Paulino
  • Hariel Revignet
  • Mariana Rodrigues
  • Kika Carvalho
  • Erica Malunguinho
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