Red Flower
13.03.2021
24.04.2021

Red Flower – ou o fogo [1]  – é a primeira exposição de Henrique Pavão (Lisboa, 1991) na Galeria Bruno  Múrias. O conjunto de obras que apresenta expressa um movimento transitório e de renovação, ancorado num processo de revisitação do artista a trabalhos anteriores. Desse processo, o artista resgata a imagem de um confronto entre um tigre e um leão que, em tempos, retirara do youtube e onde apenas  está disponível um excerto do filme original. Motivado pela vontade de aceder à versão integral do filme, produzido na década de 1930, Pavão procurou por um exemplar que acabou por adquirir. Contudo, a violência retratada no filme, para captar a instintiva ação de  sobrevivência entre os dois felinos que lutam até à morte, levou o artista a destruí-lo.

Da película de 16mm restam somente um frame que dá forma à fotografia The Adventure Parade: Lion Tiger Fight [2] e as cinzas que repousam no interior de cada uma das Red  Flower(s). Esses objetos, urnas em terracota cozida em soenga cuja chama foi ateada pela própria película sacrificada, são réplicas de artefactos pré-colombianos que integram a coleção do Museu de Antropologia da Cidade do México. [3] Na sua expressão  arqueológica, as urnas denunciam etapas de um processo construtivo lento que começa com a  modelação e a queima das peças – que lhes enriquece o espectro cromático, contrastando as partes  mais escuras e mais queimadas com as de aspeto mais cru e mais claro, ou menos fustigado pela chama  e pelo calor do processo –, a que se soma um atento esforço de restauro provocado pela fragmentação das peças sob o solo e o encobrimento efetivo das suas partes, que levou o artista a  proceder à escavação para reencontrar os pedaços perdidos dos artefactos que, depois, reconstruiu.

Essas quase arqueologias partilham o espaço central da exposição com cinco projetores que exibem  cinco fotografias de Pavão sobre um antigo cinema da aldeia alentejana de Salvada, erguido no Estado  Novo, na mesma década da rodagem do filme da luta de felinos. As imagens que compõem Shoshanna [4] estão alteradas no seu ponto de exibição para dialogarem com a cor da terra do chão da Salvada e, nos projetores, colocadas de modo a sofrerem uma modificação cromática ainda maior, à medida que o dispositivo as queima, gradualmente ao longo do tempo de exposição. Quer os artefactos de Red Flower como os projetores de Shoshanna estão colocados sobre plintos de taipa cor-de-chama, essa mesma terra do chão do lugar do Baixo Alentejo, onde se situa o cinema e onde o artista pensou e deu corpo a este projeto expositivo e que, assim, fazem sobressair as ligações que aqui explora em torno da ação simbólica do fogo e do queimar.

 

Maria Joana Vilela

 

[1] Red Flower é o eufemismo escolhido por Shere Khan, o temível tigre de The Jungle Book (1894), de Rudyard Kipling, para se  referir ao fogo, com o intuito de desvalorizar os efeitos do elemento: são apenas flores, flores vermelhas;
[2] The Adventure Parade: Lion Tiger Fight, aqui título da peça de Pavão, é também o título original do filme por ele destruído;
[3] Civilização Zapoteca e Mixtecas, documentados pelo artista numa viagem de investigação ao México em 2019;
[4] A referência é a Shoshanna Dreyfus, a incendiária do Cinema do filme Inglourious Basterds (2009), de Quentin Tarantino.

 

 

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