I can’t see you, but I know you’re here
11.01.2020
07.03.2020

Ao melhor conhecedor do trabalho do artista poderá tocá-lo, antes de mais, a surpresa, já que a pintura não ocupou, até hoje, um lugar de destaque na obra de Rui Calçada Bastos (Lisboa, 1971). Contudo, mais do que a rutura, a pintura representa aqui a condição irremediável da continuidade. Porque o trabalho de Calçada Bastos se ordena fundamentalmente pelo jogo de entrelaçar e que é a pedra de toque para a sua compreensão como obra inteira. I Can’t See You, But I Know You’re Here carrega-se do múltiplo pensar e do múltiplo fazer, tem a espessura do processo continuado, lançado no gesto presente e habitável. É uma exposição altamente imersiva que reclama o mergulho no espaço e a ação de ativação e expansão das obras, para além da simples contemplação. Clama-se à disposição para o ausente, dá-se espaço à entrada do que não se vê e que aí está, como quando em As Asas do Desejo, de Wim Wenders, o homem procura no gesto do desenho os traços do anjo que ele não vê, mas que sabe que aí está, proferindo a certeza: “Eu não te consigo ver, mas sei que estás aí.”

Em várias dimensões, a exposição aponta para esse desenhar que é sugerido na forma do gesto do artista e completada pelo eco em nós. A mais óbvia dessas dimensões é, talvez, o azul-verde das paredes que nos põe dentro de uma esfera de purificação e de glorificação, de memória ou, até mesmo, de combate ao esquecimento (Letes). Estamos, pois, dentro de um espaço que é simultaneamente de preservação e de continuidade, como é o espaço de um museu, onde se elevam e se expandem os objetos. E é assim que a cor da sala determina, em grande parte, a relevância do que é exposto e o nosso lugar nessa relação. Em cada retrato, dos três conjuntos expostos, reconhecemos figuras possíveis, desaparecidos que ressurgem da soma do que deles ressoou no gesto do artista, como o resultado de uma atenção ao iminentemente visível e implicitamente atuante. Os retratos são restos de uma existência que nos assoma por ter pousado sobre o mundo e o ter interpelado nas dimensões possíveis ao tempo de uma vida, tantas vezes, anónima. Eles são o registo revelado das poses, dos contornos, das sombras e das luzes de uma identidade que apenas tem o fim e a sua última forma em nós espectadores. É em nós que um rosto ou corpo ganha sentido e tem o seu valor. Outra expressão do desenho aberto é a peça ao fundo da sala, onde o artista põe em obra um conjunto de fios de suporte de quadros antigos, que aí testemunham a verdade que já serviram, enquanto nos multiplicam as leituras sobre as obras e sobre a exposição. Mais do que um desenho efetivo, da mancha plástica de um vestígio mais físico do passado, a obra reverte-se na expressão das possibilidades eternas de presente e de futuro, podendo ser mais ou menos próximas daquilo que já foram, por se desdobrarem entre o esforço da memória e o da imaginação. Por fim, lançado ainda sobre este jogo, o mapa de títulos dá impulso e continuidade à abertura fundamental que atravessa a exposição. Cada um deles é também uma história possível ou uma potencial origem do trabalho. Eles colocam as obras sobre os ombros do artista e expressam um espectro reflexivo interno a ele; revelam uma dimensão mais privada, que podia muito bem estabilizar a leitura, mas que, ao contrário, flutua, para manter aberta a transformação ou o porvir irremediavelmente entrançado da exposição e do seu trabalho, em geral.

 

Maria Joana Vilela

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