Paisagem para Desaparecidos
15.09.2018
10.11.2018

A exposição começa em 1991. Aos vinte anos, Rui Calçada Bastos (Lisboa, 1971) faz uma viagem iniciática ao Tibete. Em 140km e nove dias, cruza os Himalaias Indianos para chegar à vida nova. Do episódio emergem algumas das peças (Paisagem para Desaparecidos II) que hoje apresenta, juntando-se a outras, para, assim, a tempos e cronologias distintos, darem forma a uma paisagem. E se a exposição o artista a concebe para hoje, é porque hoje é precisamente a condensação de um tempo inteiro que se evapora à medida que sucede na sua cadência própria, mas enchendo-se, no mesmo movimento, de uma misteriosa densidade. Paisagem para Desaparecidos é sobre a ausência.

Depois de tudo ou mesmo antes de tudo é a ausência o que está, e o que condena. Mas é também a ausência que expande a memória da experiência, a certeza da passagem, a poesia inerente a esse vazio outrora habitado. A exposição desdobra-se, pois, nestes termos, em três – talvez mais – ausências, com diferentes origens, âmbitos e sentidos; cria-se uma rede, uma paisagem. De um modo mais específico, as peças são, elas mesmas, lugares vazios passíveis de acolher, de forma mais ou menos direta, de forma mais ou menos óbvia, a presença humana. No caso das fotografias do Tibete trata-se da ausência do autor ele mesmo, dada a distância temporal que o separa hoje, com quarenta e sete anos, dessa viagem; mas também de um contexto natural que poderia muito bem representar o mundo, antes – ou depois – do (de um) homem, ou qualquer lugar distante que julgamos que existe – certamente existe -, repetidamente, planeta afora, aguardando o viajante. O que é certo é que a experiência (e aqui serve-nos de luz a vertente iniciática daquela viagem) é algo de profundamente humano, profundamente pessoal e, por isso, absolutamente silencioso. A compreensão da experiência está muito mais próxima da observação do que do ditado. E, por isso, é que a memória é tão plástica e se projeta, pelas mãos do artista, de forma tão simples e em tão poucos gestos. Veja-se Paisagem para Desaparecidos I.  Na peça, a ausência de matéria acessória, acrescentada, a avolumar-se sobre os objetos expostos, confere-lhe a leitura que vai direita ao assunto, que expõe, precisamente e em absoluto, o que não está; o que se extrema, mais ainda, em Paisagem para Desaparecidos III; que como num desvario, na obsessão pelo desvelamento, expõe a mesma evidência: cinzas. Ou poesia: a vida como um misto de fatalidade e salvação, e a beleza dentro dela: os encontros.

Rui Calçada Bastos tem uma relação muito particular com a viagem e, bem assim, com os vestígios de quaisquer passagens. Num sentido simbólico, ele concebe esta exposição como uma suspensão, como se nos fosse concedido o privilégio de flutuar entre memórias, sem sermos arrastados pelo curso infalível do tempo, mesmo compreendendo a impossibilidade de tais circunstâncias. Trata-se, um pouco como na sua viagem, de uma experiência mística, aquela que nos põe simultaneamente diante da fatalidade e da poesia.

 

Maria Joana Vilela

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