Filão
23.03.2019
04.05.2019
Filão é a expressão transitória de uma arquitetura interpelada sob o mote de uma interioridade construída em cima da relação entre as dimensões fundamentais ao trabalho de Ricardo Jacinto (Lisboa, 1975): a fragmentação da experiência no espaço e a arqueologia da sua gramática plástica. A exposição compõe-se de fragmentos da sua obra, aqui sujeitos a uma transformação em termos da forma, da expressão, do sentido, do significado. São partes de um vocabulário plástico e sonoro, de uma gramática transmutável que Jacinto vem elaborando na sua prática artística, desde o princípio. Cada uma delas é, por isso, a expressão de um movimento potencialmente infinito que a cada momento se constitui como componente lógica fundamental na construção da narrativa e do espaço atuais.
A peça central, Filão, remonta, na sua forma original, a 2007, como expressão da experiência do artista nas Minas da Panasqueira, no Fundão. Os três volumes tomam o aspeto de um devir construtivo, de uma protoarquitetura que interpela determinantemente o lugar e lhe confere especificidades que atuam ao nível da qualificação desse espaço interior. O filão mineral é substituído por uma fenda remissiva ao contorno melódico do segundo movimento (Allemande) da Suite para violoncelo Nº 1 em sol maior (1717-1723) de Bach, que Jacinto trabalhou a diferentes dimensões para efeitos da exposição que em 2011 apresentou no Fundão, em sequência daquela experiência nas minas. Simultaneamente e, assim, expandindo-as a todo o espaço, pares de colunas acoplados aos três blocos servem-se do suporte como condutor e amplificador do som que produzem e ativam os filões, que ao ressoarem e vibrarem através dessas frequências, se tornam também participantes ativos da peça sonora. Medusa (2014-2018) é um sistema eletroacústico multicanal de captação e de difusão do som que Jacinto desenvolveu para o seu violoncelo, com vista à investigação da experiência sensorial e plástica da fragmentação e da dispersão sónica pelo espaço, como se uma explosão separasse concentricamente uma melodia em partes que deixam de advir de uma única fonte exterior, para nos colocarem dentro da própria construção sonora. Aqui, no entanto, o som nasce de um sistema de feedbacks provocado por essas colunas nos filões e controlado por um computador que gere, por um lado, a intensidade do som que essas interferências provocam, evitando o colapso, a explosão efetiva do sistema e das suas fontes, e por outro, a construção da linha sonora através da articulação que ele mesmo elabora a partir da recolha também fragmentada dos sons gerados na ressonância e na vibração dos filões e pelo feedback, em simultâneo.
É deste modo que o artista cria como que as bases para esse espaço absolutamente interior e transitório, onde o espectador é convidado a entrar e a reconhecer o presente da instalação, a reconfiguração continuada. Porém, a luz de Splinter (2015) e, claro, o caminho remissivo que através da obra podemos fazer no labirinto formal do trabalho de Jacinto, acrescenta um contributo fundamental à transformação da atmosfera do espaço e que assim parece fazer despertar no espectador uma maior disposição para a interioridade, servindo-nos como mais uma camada lógica para leitura do espaço nesse sentido. Já ao nível da genealogia, o desenho remonta à ficção “Left Hand”, que Hugo Brito escreveu em torno dos Cones (Ricardo Jacinto, 2008), no âmbito do projecto PARQUE.
Assim, embora sejamos facilmente surpreendidos pela imprevisibilidade própria do movimento conferido ao espaço, não é tanto a estranheza o que nos toca, sobretudo aos mais atentos espectadores e melhor conhecedores da obra de Ricardo Jacinto, mas antes a curiosidade sobre a lógica em que assenta essa construção e sobre a arqueologia que o sustenta e que, de certo modo, o revela.
Maria Joana Vilela