A Hora Instável
21.09.2019
21.12.2019
I.1. A hora de total possibilidade
Da instabilidade celular aos agrupamentos humanos, o caráter transitório da matéria se manifesta implacável no núcleo das coisas. Sua sina compulsória é o sinal dos infinitos ciclos de desmanches e levantes. Das luzes do dia e da troca de pele dos bichos às marchas em derrocada de sociedades e civilizações, é isso o tempo todo. O que nos sobra é a percepção dos fenómenos, que faz variar como sentimos as temperaturas. Ao almejarmos o bálsamo terreno, ficamos à mercê dos arbítrios da espécie, nos agarramos à segurança, ao conservadorismo, ao ar condicionado e a todo anestésico que disfarça a vida. No entanto, mesmo nas décadas ou nas tardes mais tediosas, como numa quinta-feira às três horas, pode-se deflagrar uma condição limite, que nos movimenta a ponto de descolar o tempo. O momento absoluto, o instante total, que aqui devemos chamar de a hora instável. O estado de presença, ultra-agora. É quando salta a essência da intenção, o gesto primário, que não diz nada, a não ser a sua capacidade de dizer. É quando tomamos nota da pulsação vital que descortina, categoricamente, o enigma da experiência. A subida que desponta o paroxismo, a tensão limite que faz reconhecer a erupção do demiurgo. A hora em que tudo pode.
I.2. O sujeito no limite, a situação capital
Só há vida no limite, sob o êxtase radical. Quando se sente, pelo excesso, o que é excêntrico à carne; tomado o corpo inteiro por uma emergência capaz de fazer surgir a tremulação etérea que mobiliza tudo ao potencial extremo. Qualquer outra velocidade que não transpareça o ponto de transformação é apenas uma simulação anódina da substância que nutre o fenómeno em seu caráter mais primitivo. O que há de combustão nos acessos e nas insurgências enche os pulmões, corre nas juntas, sobe pela coluna, bate na cabeça. Auge libidinal que comanda as alterações sensíveis das vísceras, sua perfusão sanguínea, a libertação das hormonas das secreções digestivas. O élan abismal que desatina, define o caminho, baralha o jogo, corta cabeças, derruba impérios, funde um metal no outro. Está no ranger do apetite, no suor que escorre na têmpora, no som da trombeta que provoca as vanguardas. Está na faca afiada que parte o queijo com precisão, no punho que se esgueira na altura de um queixo, nas respirações que embalam as transas e as asceses, no começo das amizades e das inimizades, nas grandes negociatas e nos deslizamentos de terra. Na garganta do primeiro galo que acorda, no surto do indivíduo que ascende, na exaltação da massa que toma as ruas. Sempre que a energia atinge certo grau de aquecimento, e o encontro, o atrito, é tamanho que qualquer estrutura corre o risco de ruir, desabar. É o que pode vir à tona a qualquer instante, em qualquer lugar.
I.3. Transes no fim do mundo
Na contingência da hora, o apocalipse faz a curva. Não são poucos nem amenos os sinais do tempo. No colosso alçado ao quotidiano, as informações se criam, se agigantam, se acotovelam, numa multidão incessante cuja justaposição escorre febril, líquida e ofegante pelos quatro cantos do mundo. Pesa o acumular de técnicas, os infinitos empilhamentos, as incessantes misérias… Os algoritmos, como o chumbo, enigmático, fluido ou maciço, pairam sobre todos nós. Entre a profunda perfuração do solo e a especulação sideral, a aparição macabra dos desastres de larga escala em suas imagens mais terríveis, e também os novos corpos, ciborgues que se forjam no furor dos desejos que agora, mais do que nunca mas como sempre, tomam seu devido lugar na superfície. O que antes era ouvido apenas como ruído abafado já abocanha a linguagem comum na jugular. O misticismo se manifesta em cada pedaço de calçada, mesmo no alvorecer dos códigos e aparelhos que possibilitam as incontáveis trocas, em microssegundos, de tantas mercadorias, ideias e valores em termos cada vez mais abstratos. Pernas, braços, próteses, cirurgias, administração de hormonas e o tempo todo a luz branca, cegante, da exoeconomia. Todas as melhores drogas e todo tipo de serviço. As ambiguidades estalam cortantes, num chiaroscuro metálico e apressado. Sob a estética da aceleração que nos envolve deverão arder os transes mais radicais. Como no fim de um sprint vertiginoso que acabou de consumir nossas forças por completo: a vista apaga e o peito queima enquanto ainda somos chacoalhados pela inércia. Subitamente, num movimento espontâneo, o pescoço solavanca para trás apenas para contemplarmos, olhos ao máximo, acima.
Germano Dushá
- Ana Matheus Abbade
- Bruno Cidra
- Daniel de Paula
- Deyson Gilbert
- Renata de Bonis
- Lais Myrrha
- Marcelo Cidade
- Maria Noujaim
- Nicolás Robbio
- Nina Botkay
- Paulo Monteiro

A Hora Instável
Vista de exposição

A Hora Instável
Vista de exposição

Paulo Monteiro
Sem Título
2018
58,5 x 21 x 9 cm
Alumínio
Edição: 1/2

Renata de Bonis
Talingstraat 5, Rotterdam
2019
230 x 140 cm
Cianotipia sobre algodão e estrutura metálica

Marcelo Cidade
Expansão por Subtração (Le Corbusier)
2018
335 x 760 cm
Cacos de vidro fixados em parede

Marcelo Cidade
Expansão por Subtração (Le Corbusier) (detalhe)
2018
335 x 760 cm
Cacos de vidro fixados em parede

A Hora Instável
Vista de exposição

Maria Noujaim
Giro
2017
240 x 200 cm
Adesivo vinil sobre parede

Maria Noujaim
Giro
2017
Vinil: 240 x 200 cm
Duração: 3 ciclos de 20 minutos com intervalos regulares entre cada ciclo
Adesivo sobre vinil e performance

A Hora Instável
Vista de exposição

Paulo Monteiro
Sem Título
2017
16 x 14,5 x 7,5 cm
Ferro
Edição: 2/3

Paulo Monteiro
Sem título
2017
26 x 16,5 x 5,5 cm
Ferro
Edição: 2/3

Ana Matheus Abbade
Salto
2016
02’42”
Vídeo
Edição: 1/3 + PA

Nicolás Robbio
Sintonia #9
2018
210 x 155 cm
Corda de nylon, roldanas, parafusos e contrapesos

Daniel de Paula
estrato
2018-2019
160 x 10 cm
Testemunhos de rocha resultantes de sondagens geotécnicas para obras públicas de estruturas de produção de energia, andaime tubular equipado, luva de emenda e sapata ajustável

Bruno Cidra
Sem título #2
2019
Dimensões variáveis
Bronze e papel

Renata de Bonis
Redoma (2,08m)
2019
Dimensões variáveis
Copo plástico e inseto morto encontrado em exposição de arte e instalado na parede na altura máxima que a artista alcança

Deyson Gilbert
Proclivi scriptioni praestat ardua
2019
Dimensões variáveis
Íman, imagem com detalhe de fotografia do ex-presidente do Brasil Jânio Quadros, prego e fio de nylon

Deyson Gilbert
Proclivi scriptioni praestat ardua
2019
Dimensões variáveis
Íman, imagem com detalhe de fotografia do ex-presidente do Brasil Jânio Quadros, prego e fio de nylon

Lais Myrrha
O Instante Interminável
2015
13’45”
Vídeo
Edição: 3/5

Nina Botkay
O ponto, o choque, a diagonal
2019
Performance