Destino común
16.11.2024
04.01.2024
Entrevista por Bernardo José de Souza
BJS: Em nossa entrevista anterior, por conta da exposição “O Canto dos Sapos” (Galería Luisa Strina, 2023), falamos muito sobre não criar objetos novos, mas, sim, repropor nossa relação com a cultura material já existente. De lá para cá, alguns elementos se repetem, enquanto outros, novos, surgem — e alguns ainda anteriores reemergem. São como padrões de uma topografia em constante processo de transformação — a mesma e outra a um só tempo. Gostaria que comentasses o que se passou entre a exposição anterior e esta nova mostra “Destino común”?
PA: Quando acabei de montar “O canto dos sapos”, percebi que nenhum elemento se repetia entre as obras. Os olhos não conseguiam habituar-se demasiado a nada, o que levantava dúvidas sobre se aquilo que víamos não seria um arranjo passageiro de onde, literalmente, qualquer coisa poderia entrar ou sair. Esse estado de interrogação sobre as hierarquias do que nos rodeia, e que comentámos na entrevista anterior, continua em “Destino común”. Também aqui, o título alude a um aspecto externo e a outro interno. Por um lado, um presságio de mundo, o único que creio possível por agora, e por outro uma resposta e esse presságio que se torna numa mistura de coisas que vou fazendo ou pensando, muitas vezes sem me perguntar como se interligam, onde se dirigem ou qual o seu estatuto. Como se lê num poema de Tilsa Otta: “unx crece cuando el mundo crece en unx”. Há uma peça, ou melhor, uma situação, que, nesse sentido, descreve a exposição e é o frigorífico com objectos diferentes em cima, uma espécie de espaço (tal como uma gaveta de cozinha, com talheres, velas, tesouras, fósforos, etc., ou, por que não, um caixote do lixo) onde nós deixamos uma pista mais completa daquilo que somos, e onde as necessidades importam mais do que esses próprios objectos.
BJS: Cadeado é um cadeado é um cadeado é um cadeado. Ele sempre retorna aos teus trabalhos, quase como uma fantasmagoria, ou como uma assinatura, um fecho e uma abertura, ao mesmo tempo. Lembro de falarmos sobre esse objeto que, na última exposição, não estava presente. Agora ele reaparece, sempre inescrutável, encerrando e desbloqueando novas camadas de sentido. Ou, então, funcionando como mecanismos de organização que terminam por desorganizar nossa percepção das coisas no mundo, como falamos na entrevista anterior.
PA: Há pouco tempo, um amigo disse-me que os meus trabalhos pareciam acentos sobre as coisas, uma espécie de sinalização interna. Os cadeados têm algo disso. O que é um chapéu de chuva, uma pedra, um caixote do lixo? A sua presença ao lado das obras, como uma extensão, sinaliza os seus limites ao mesmo tempo que os expandem. Na sua aparição constante (como na vida quotidiana) geram um conforto em que o olho se apoia, embora também desorganizem e levantem questões um pouco caóticas: em que mundo vivemos, que mensagens secretas guardam. À medida que ia preparando “Destino común” apercebi-me de que nunca houvera um material, ou objecto, que tivesse surgido na totalidade de uma exposição como uma assinatura, ou pelo menos nunca tão deliberadamente como desta vez. Nesse percurso comecei a perceber que o cadeado dava às peças um carácter externo, devolvendo-as mais depressa à realidade. O cadeado aparece sem aviso, causa fricção, magnetiza e deixa-as, por fim, num lugar mais perto da vida.
BJS: Recentemente conversamos sobre a ideia de nomadismo e as “feiras-chão” —espécie de mercado ao ar-livre, onde toda a sorte de objetos funcionais ou mesmo disfuncionais (quebrados/avariados) são postos à venda. Isso me faz pensar tanto na necessidade de dar novo valor de uso aos objetos em nosso entorno quanto na sua reinserção no mercado, extraindo deles novo valor simbólico e mesmo comercial. Acredito que isso trata, por um lado, da precariedade da vida e dos meios materiais para a sobrevivência e, por outro, de uma relação afetiva com objetos que nos acompanham ao longo da estrada — relações de uso e intimidade com a tecnologia que nos circunda, a qual nos permite viver e dar sentido ao universo objetivo e, também, ao subjetivo. Afinal, a construção do mundo, sempre se dá a partir de uma topografia, de uma paisagem e de um cenário no qual nos movemos, sentimos, pensamos e agimos.
PA: Este ano visitei o museu etnográfico de Asunción, no Paraguai, e enquanto olhava as cerâmicas e ferramentas dos povos originários, lembrei-me de que eram nómadas devido à sua leveza e forma. Em geral, não havia uma declarada ostentação de poder, como existe, por exemplo, em manifestações aztecas ou incas. Para mim, os objectos estavam imbuídos de uma predisposição para se moverem, serem transportados ou mudarem de estado. Também tinha lido a “Crónica de los indios Guayaquís”, de Pierre Castres, que relata as características deste povo nómada que acabaria por ser exterminado. Para Clastres, este tipo de sociedade não é improdutiva, mas produz exclusivamente o necessário. Tudo isto me fez voltar a pensar se devo produzir mais ou menos, e se não haverá no meu trabalho algo de móvel, que me faz nem sequer conseguir visualizar aquilo que faço, cartografá-lo. Por outro lado, esse ser ambulante, provisório, tem algo das “feiras-chão” de que falámos, situações em que os objectos se mesclam segundo critérios muito diversos e têm a oportunidade de se reordenar uma e outra vez. Uma espécie de mapa que se queima todas as noites. Na maior parte dos casos, estas feiras nascem de uma economia paralela, produzindo um efeito inesperado, como se pudessem acontecer em qualquer esquina, fora de qualquer controlo do poder. Essa sensação de aparição não anunciada e de combinação imprevisível de objectos está entre as coisas que fui pensado para esta mostra.
BJS: A lixeira aparece novamente nesta exposição, novamente como replica. Boa parte da cultura material, posta no mundo, ao exaurir (esgotar) sua função — ou tornar-se redundante ou ultrapassada — tem como destino o lixo. Há algo de irônico no fato da lixeira surgir ao lado de peças que possuem um certo fim descartável —um guarda-chuva, uma caixa de papelão, onde também são postos objetos de uso quotidiano — possivelmente descartáveis.
PA: Os caixotes do lixo provocam uma desconfiança activa. Assim que um objecto entra neles, começa a ser outra coisa e a combinar-se com uma série de elementos desconhecidos. Tal como os cadeados, os caixotes fecham a narrativa, embora também a abram. São, eles próprios, um lugar que reflecte um destino comum, onde aquilo que se agrupa convive. Na sua relação com a exposição, ao estarem vazios podem provocar essa vertigem que referes. Se nada está condenado a estar onde está, se todos os objectos têm algo de móvel, de ambulante, uma das possibilidades é que acabem aí. Nesse sentido, no seu conjunto, as peças geram caminhos e lugares para os objectos (espaços de repouso, contentores) em que estes podem alojar-se, apoiar-se, momentaneamente.
BJS: Ao menos desde Magritte, os guarda-chuvas negros são investidos de uma carga de mistério. Talvez sempre tenham sido, pois quando fechados ocultam sua forma, e quando abertos revelam sua função. Aqui, estão impedidos de serem abertos, como se ocultassem algo. Parece-me que, no seu mutismo, o guarda-chuva possui uma eloquência enorme, justamente por sua carga um tanto surrealista. Por outro lado, trata-se de uma prótese do corpo humano, como outras tantas que há em teu trabalho.
PA: Quando tenho de começar uma exposição, penso frequentemente naquilo que já fiz num deserto, um espaço aberto e plano, onde as peças se movem livremente, podendo ser vistas de qualquer lado, sem paredes, etc. Essa imagem errante, desolada, produz um espectador estranho, mais observado do que observador. O chapéu de chuva fechado pode ser usado como um bastão, como elemento traduzido para expandir os nossos limites, uma espécie de prótese. Na sua posição horizontal, parecendo flutuar, dividido pelos camarões a cada 5 cm, funciona também como um instrumento para medir o que nos rodeia ou medir-se a si mesmo. Regressando à tua pergunta, se o chapéu de chuva foi usado muitas vezes por outros artistas, o cadeado parece interrogar esse fascínio, deixá-lo intacto na sua plenitude. Como se o que importasse verdadeiramente não fosse tanto o que fazemos com ele, mas o facto de voltar a aparecer vez após vez.
BJS: “Design always presents itself as serving the human but its real ambition is to redesign the human.” Beatriz Colomina. A autora, no livro “Are We Human”, fala sobre tudo no mundo ser design: a paisagem, as tecnologias que engendramos e com as quais convivemos ou mesmo o corpo humano e a própria mente humana, bem como a linguagem. E, a seguir, ela fala sobre como o design, para além da sua função original ou imediata, acaba por transformar seu criador. De que forma o design com o qual trabalhas e jogas redesenhou tua mente e tuas ideias como artista ou como ser humano?
PA: Eu creio que a arte também é um lugar para desconhecermos. Ou seja, para pensarmos a partir de um ponto zero. Há alguns trabalhos que têm esse carácter. Os poemas de Ricardo Carreira, que nomeiam o que vêem para depois nomearem o que nomeiam, são um exemplo. Nesse sentido, à medida que vou vendo o que faço, às vezes tento dar um passo atrás. Os cadeados misturados com obras em que antes não surgiam, podem ser um sinal disso. Ou as réplicas que retornam objectos industriais a um estado de projecto, de maquete, com todo o que esse processo implica: voltar a desenhá-los, medi-los, encontrar-lhes a origem. Ou na quantidade de símbolos que agora surgem em “Destino común” tentando gerar as perguntas apropriadas sobre quem somos (logótipos de fogo, trevos, clips, uma lua numa paisagem de copos entrelaçados, um “sticker” de Johnnie Walker a sair de uma gaveta). Desconhecer, des-inventar talvez sejam caminhos favoráveis para reiniciar alguns aspectos da nossa realidade colonizada.
BJS: Existe fim ou começo na tua criação artística? Ou seria um processo infindável ou inesgotável de renomear as coisas no mundo e a elas atribuir novas vidas?
PA: Gostaria que o meu trabalho fosse visto sem conclusão, ou seja, sem descrever um caminho limitado ou parado (a água parada apodrece), mas precisamente o contrário. Agora é certamente um estado e, a dado momento, esse estado pode já não precisar mais de mim. De facto, sempre que termino uma obra penso que é a última que farei, mas depois constato que a vida não só supera a arte como a ela obriga e impulsiona. Creio que tem algo relacionado com os acentos de que falávamos, e que esses impulsos nos meus trabalhos são cada vez menores ou mais invisíveis. Num livro de António Bispo dos Santos li uma frase que ressoa com isto: “Às vezes você vai andando e encontra uma pedra bonita e aconchegante para se sentar”.